a maria




Era de uma secura danada: os braços dependurados, as mãos grossas e os dedos duros e turvos. O sol lhe concedeu uma segunda pele, rachada, mas que escondia a que era dela de nascença. A falta de água acrescentava um tom grave, gravíssimo; e já era cor de pele.
O lugar onde moravam era no quinto do infernos, o calor também. Não tinha luz, nunca teve...
maria nasceu e com ela um que de quem tem, mas não sabe o quê, que sente, mas tudo é dor de cabeça ou de barriga. Era filha do nada: a mãe morreu tão logo nascera. Mal nasceu e fizera a sua primeira morte. Sua sombra. Era culpada por natureza.
Amaria se pudesse, se tivessem lhe mostrado o que de fato era fome. Mata o bicho e come, o marido dizia. Um palhaço, o mió homi do sertão. Trabalhava noite e dia, menos em noite de São João. Que coisa mais desgraçada e sagrada! A boca de maria sempre seca, seca... faltava-lhe água - tudo. Para ele, a boca dela era um corte na cara, não lhe servia de nada. O peso da sua palma era a única coisa que ela tinha dele, mais nada de nada. O marido sabia olhando aquela cara: ela era culpada. Não se sabia de quê, mas era.
maria ficava em casa nessa época, os fió por um fio. Barriga, só se fosse d'água. Que doença! Que ironia! Logo se partiram, não restou nenhuma ligação. E nunca a fizeram. Foram carregados pelo vento. Ficou só.
Fez-se luz; era pouca, no entanto, havia chegado. Dava para trocar o ferro por um de plástico (que agora ligava na tomada), dava para se sentar e ver televisão sem cores. Dava pra distrair o homi, principalmente.
Dava para brincar de deus e fazer da noite, dia. Foi aí que ela viu numa tarde, a tevê tagarelando: ...que venham todos as cumadi ociosas pra escola que se instaura finalmente". Era a primeira proposta que lhe fizeram na vida, pareceu de mau feitio não aceitar. Primeiro, o homi não deixou. Se não fosse, a culpa seria dele. Mas a culpa é sempre minha! E com um pedido de culpa, se foi. O marido só tinha mão, ela sabia, não iria entender. E não importava, já não doía. Até porque, a segunda pele a protegia.





A primeira água brotou ali, naquela sala de poucas cadeiras e muita gente, quando a professora resolveu desenhar na louça algo novo: o coração humano. E o que maria teve não se explica a gente que sabe de tudo, tudo, tudo.
Aquela água era dela, brotava do fundo, adormecida, salgada como o mar. O seu coração vulcânico despertava, a impulsionava, pulsava. O que ela mal sabia de coração não passava daquele desenho simetricamente perfeito, redondo e cheio, que saltava das telas. Do quadro negro era outro, verídico: torto, envergado, maltratado, apertado, do tamanho de suas pequenas mãos. É meu cumadi, é meu!, ela tentou dizer. No entanto, ela só o ouvia mais alto; ele pulsava, pulsava, era o fim... Bateu, bateu, bateu, até se abrir.





A culpa era dele, não mais dela. Meu coração humano. O coração humano. O marido sentado defronte ao seu espetáculo, a roupa cheia de tinta, pintado da cabeça aos pés, o nariz vermelho de tanto espirrar. Em uma construção, mal ele sabia o que fazia, o que era. E achava que era pedreiro. Ele olhava as próprias mãos e se sentia ridículo, construíra o que mesmo? Deixadas sem função, ele as usava em mim. Pobre de mim. Pobre de nós. 





Quis passar - não as roupas ou os poucos canais da televisão -, passar a limpo, o que fora por tanto tempo sujo de terra, da poeira que subia e escondia o que era mesmo o sol. Não era só calor: era luz. Faltava-lhe água... água que agora brotava dos seus próprios olhos. Ela era sua, de si mesma. As mãos, suas únicas companheiras, pois não tinha espelho e nem mais filhos. Agora as olhava, chorando, e então as botavam de encontro aos olhos. Quem a estivesse vendo, acharia que estava com vergonha. Só ela sabia. Ela as usava como quem descobre que se pode (e deve) usar o que é seu para si.
Aprendia, desprendia... Ah maria, ah maria, que é que se tem? Ao mar ia, ao mar ia... O sol não mais esquentava, aquecia; e o sólido, derretia. Ao mar ia, ao mar ia, e foi... A água caía, abundante, transbordando. Caía de cima, essa água que despencava, rasgava, refletia, ressonava. maria escorria junto e desmanchava-se. Arrancava com mãos suas a roupa intocada, roupa suja, corpo limpo. Tocava-se ali, aqui, as madeixas, a face, e as águas rolavam. Nada se retinha.
Fez-se silêncio de repente. As últimas gotas escorrendo pelo ralo pareciam encerrar uma melodia, gota por gota. Já não tinha mais água na caixa praquele dia e ainda nem era noite. Nem enxugou, vestiu-se molhada, as mechas pregadas nas costas, na testa, na roupa, no chão: Maria, Maria.
Maria, Maria.     
Passou por ele, direta, direita, até a porta e voou como uma águia que sai do ninho. Não era culpa - nem do seu coração mais. Era a vida que exigia. Ela sabia que deveria ser pássaro dali pra fora, só assim o homi poderia ser... Não há culpado com gaiola vazia.
Parou tão logo fingiu sair ao ar. O peso do corpo era maior do que ela aguentava; todas as coisas dentro de si, não suportava. Inflou quando o viu para se desprender, agora pousava onde precisava e onde bem quisesse ser.
E foi... Focada em nada, um calor escaldante, todo o seu esforço sumia num suspiro preciso, necessário. As mãos, limpas. Uma de cada lado, entrelaçaram-se enfim.  


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