Obituário [Conto]



Naquela noite, seria velado meu corpo. Tudo estava muito confuso para mim. Desde que morri ou em outros termos, desencarnei, não sabia exatamente o que estava fazendo ali. Sei que estava na igreja e ora ou outra me surpreendia com flashes que me transportavam de uma cena para uma totalmente diferente. E do ponto em que me encontrava, observava meu caixão. Meu semblante não transparecia o sofrimento que tive em vida quando descobri que havia um câncer nas regiões do meu útero. Jamais imaginei que morreria precocemente, ainda mais por essa doença.

Vi meus irmãos sentados nos bancos da igreja. Alguns familiares e poucos amigos faziam presença. Imagino que suas ausências de muitos amigos eram sinônimo que não era tão "querida". Talvez minha morte tenha sido um alívio para alguns. Saí um pouco do recinto, fui lá para porta de entrada e quando vi meu primeiro namorado, Edward, assustei-me. Ele estava parado, com uma feição hesitante, não sabendo se deveria ou não entrar. Me aproximei dele e na mesma hora, passou um senhor e curioso, perguntou:

- "Jovem, me perdoe a intromissão, mas quem morreu?"

Edward olhou nos olhos daquele velhinho e com a voz embargada pelas emoções, disse:

- "Morreu alguém muito importante para mim. Alguém que amei muito e que jamais poderá ouvir essas palavras por ser tarde demais. "

Eu, entretanto, ouvia toda a confissão de Edward e cada sussurro, rasgava meu coração em fortes emoções. O senhor, ciente da situação e sem desrespeitar os sentimentos do jovem, retirou o chapéu que usava, abaixou a cabeça e consentindo com Edward, disse:

- "Eu sinto muito..."   

Edward não tinha muito conhecimento que a vida continuava e que a morte era apenas uma passagem, muito dolorosa por sinal. A morte era só mais uma porta que todos nós seremos convidados a atravessá-la, carregando conosco, somente a fé, justamente por não saber o que nos encontra do outro lado. Mas, eu, apesar do meu corpo físico ter falecido, me sentia mais viva do que antes. 

O senhor, com carinho, perguntou para Edward que tipo de pessoa eu era e me surpreendi ao ouvir tais palavras:

- "Ela? O que posso dizer? Ela era uma garota diferente. Sua presença se destacava em qualquer ambiente, mesmo que não o quisesse. Ela tinha alguma coisa que atraia os demais olhares. Era o jeito de se expressar, a forma de agir, olhar, conversar, sorrir... Tudo isso a tornava alguém especial. Mas, ela era uma garota muito teimosa, cabeça dura e impulsiva! Quantas vezes, não brigamos por causa dessas coisas? Mas sei que ela tinha um coração imenso e movia esforços para ajudar aqueles que amava. Era alguém carinhosa, afetiva e sensível, mas ao mesmo tempo era uma garota muito instável e insegura. Havia dores mais profundas em sua alma, cuja quais, reservava-se apenas para si por acreditar que dividi-las seria incômodo para os outros. Ela sempre achava que incomodava as pessoas, quando na verdade, sua presença tranquilizava os outros. As pessoas se sentiam bem ao lado dela... E foi, a única mulher que amei de verdade..."

Ouvindo a confissão de Edward, era impossível que eu não me sentisse abalada. Não imaginava que ele pensasse isso tudo sobre mim. O velho incentivou o jovem a entrar no velório para se despedir de mim. Ele agradeceu e adentrou no recinto. Meus olhos acompanharam Edward até que sumisse de minhas vistas. De repente, um outro amigo meu chega, cumprimenta o senhor na portaria. Era Louis. Antes de entrar no velório, Louis percebeu que o senhor desejava um pouco de sua atenção e resolveu fazer companhia para ele. Parados, na portaria da Igreja, o velho perguntou:

- "Como era essa pessoa que faleceu?"

- "Cara, eu nem sei o que responder! Tudo o que eu sei, é que ela era minha melhor amiga! Sabe, ela era conselheira. Sempre tinha uma visão positiva para nos dar, mesmo nas piores situações. A garota era ingênua demais. Acreditava em tudo o que os outros lhe diziam e por ser tão bobinha, alguns acabavam se aproveitando da sua ingenuidade. Era meio doidinha, desastrada e enrolada. Tinha uma dificuldade imensa para concluir projetos que iniciava. Desistiu de uns dois cursos até encontrar o certo. Contudo, sempre notei nela, um desejo muito grande por querer ajudar as pessoas. Era bem idealista e acredito que realmente ajudaria os outros se não tivesse interrompido seus planos por causa dessa doença..."

Louis era meu melhor amigo. Era espiritualizado e assim como eu, era alguém que sabia que a morte era só uma parte do processo de transformação. Em vida, eu e ele buscávamos nos inspirar nas leituras do Grande Mago, para deixarmos nossa obra no mundo! A morte, contudo, nos pega de surpresa e como deixar para trás, uma vida da qual éramos tão apegados? Nos apegamos facilmente as pessoas, os títulos, os status, as situações e quando somos surpreendidos por Ela, como ir embora sem demonstrar um mínimo de apego a matéria? Louis, demonstrava serenidade em seu semblante e o senhor, olhou carinhoso e falou para ele adentrar ao recinto para se despedir de mim, Louis, sorriu e respondeu:

-"Mas a vida continua! E ela está tão viva em outros planos quanto em meu coração!"

O velho concordou com a cabeça e acenou para Louis, se despedindo. Enquanto o tempo passava, continuei ao lado daquele senhor, como se sentisse que mais uma figura fosse surgir para falar alguma coisa sobre mim. Alguém atravessou o jardim dos fundo da igreja e trazia em mãos, rosas. Era minha mãe. Ela cumprimentou o senhor e o convidou para adentrar no velório. O velho perguntou se ela estava bem e minha mãe respondeu:

-"A pior dor é ver um filho seu partir antes de nós, pais..."

O velho consentiu com um olhar acolhedor e perguntou para minha mãe, que tipo de filha eu era, e ela, emocionada, respondeu:

- "Minha filha? Ela era moça inteligente! Esperta, curiosa e ao mesmo tempo, preguiçosa com os afazeres domésticos. Tinha mente de filósofo! Nem sei donde ele tirava tantas teorias malucas! Sei que ela adorava o mundo esotérico e místico. Sempre desejou que alguma manifestação espiritual acontecesse com ela. Minha filha era meu braço direito, me ajudava no que podia. Às vezes queria carregar as dores dos outros, se preocupava demais com problemas que não era dela. Seu sonho era fazer algo para ajudar as pessoas... Muitas vezes, brigávamos, pois ela era cabeça dura demais! Sei que minha filha era uma garota muito romântica, idealista e sonhadora e por ser tão sensível, sofria com as dores do mundo. Ela se fazia de forte, mas sei que era uma menina meiga... Tínhamos dificuldades para demonstrar afeição uma pela outra e nas raras exceções, ambas compartilhavam grande emoções! E eu sei... que onde ela estiver, estarei junto em pensamento, pois Amor de mãe, é eterno!"

O velho olhou para minha mãe, carinhosamente sorriu e despediu-se dela. As palavras haviam me emocionado bastante. O Senhor, olhou para mim e me perguntou:

- "Michele, agora você está pronta para atravessar o portal?"

Ele me deu a mão e me acompanhou à um imenso portal de luz que surgia diante de nós. Eu não sentia medo, tristeza ou dor. Meu coração vibrava em uma única sintonia, chamada AMOR. E eu sabia que por onde fosse, levaria comigo quem eu tivesse importado para dentro de mim...

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