C/alma





Era noite quando eu recebi uma ligação. As palavras do outro lado da linha estavam secas e diziam: 

- Michele, vem para cá. Sua mãe sofreu um acidente. 

No primeiro instante, eu pensei: "Acidente? Como?". Minutos antes, tínhamos deixado ela em casa, em total segurança. Foi só chegar em minha casa, aquietar-se na cama, que logo o telefone tocou com uma notícia assustadora. Não hesitei, chamei meu marido e corremos para o local que meu irmão havia informado. Chegando lá, vi minha mãe deitada naquele asfalto. Um casal fazia uma espécie de barreira evitando que outros veículos trafegassem por ali em alta velocidade. Meu irmão chegara antes de mim dada a proximidade de sua casa até o local do acidente. Ele segurava a mão dela. Deitada em um chão sujo, com parte da roupa rasgada, não conseguia se mexer. Excepcionalmente naquela noite, o Samu chegara mais rápido que o de costume. As horas após o ocorrido foram horas difíceis, uma noite de muita dor. Tinha medo do que poderia vir acontecer.

Felizmente, a colisão da moto em seu corpo não tinha sido tão feia quanto imaginamos. Sério. Os pensamentos foram os piores o possível. Ela "apenas" fraturou a bacia. O acidente não atingiu seus órgãos internos, não danificou sua coluna e a fratura está se fechando lentamente através do tratamento "conservador". Graças a Deus. Ela ainda tem mais um chão para percorrer ao nosso lado.

Entretanto, no primeiro instante, você fica assustada. A vida não te prepara para lidar com a doença de um familiar, com a morte de alguém próximo. Essas situações deveriam ser encaradas com  mais naturalidade, afinal, o corpo envelhece, adoece, morre. Ninguém é eterno e uma hora ou outra, a sua vez também vai chegar. O vigor dos 20 anos desaparece quando você chega aos 30 e o que dirá aos 50, 60 ou 80 anos. É o ciclo imutável da existência. E como dizia nosso grandessíssimo Chicó: "É verdade; o cachorro morreu. Cumpriu sua sentença encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre".

Quantas vezes não me desesperei em situações que as julgava insolúveis? Mas que ao me propor viver um dia de cada vez, as feridas doíam menos com o passar dos dias, as soluções surgiam misteriosamente com o raiar do sol e tudo voltava vagarosamente ao seu lugar. O mundo poderia estar desmoronando na noite anterior, mas no dia seguinte, eu conseguia construí-lo novamente com minha força e resiliência, com calma e mais alma. A calma tem dessas coisas. Ela coloca sua alma em movimento e quando você coloca sua alma naquilo que faz, sua marca fica no mundo, sua presença marca um ambiente, sua alma marca a vida das pessoas. Eu sei. É difícil reconstruir, mas não é impossível e na possibilidade de fazer a diferença no dia seguinte, esses momentos de angústias são válidos e necessários. A morte e a doença tem que ser encarada dessa forma também: c/alma. É natural. É misteriosa. É transcendente. Você aprende com a enfermidade. Ela é o fim e pode ser também o começo de uma nova existência. É um ciclo que se encerra, um livro que se fecha, uma chama que se apaga; mas cuja a "alma" permanece com quem ainda vive encarregado de cuidar das memórias.   

Eu tenho que ser mais forte. Não apenas por mim, mas por aqueles que precisam da minha força nesses momentos: difíceis, de queda, de desequilíbrio, de tempestade, de morte, de doença. São situações assim que fortalecem nosso espírito, humaniza nosso olhar e nos tornam mais solidários, pois queremos fazer o que está ao nosso alcance para amenizar o sofrimento de quem amamos.

São essas situações que colocam nossa alma em movimento e esse movimento faz a alma crescer.    

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