Eu já não sei bem onde estou. Às vezes me olho no espelho e não reconheço quem está ali. Sombras e vozes me atormentam diariamente, minha memória escapa como areia entre os dedos. Ainda há algo em mim, que por alguma razão, ainda sente saudades daquilo que não vivi.
Eu sei, vivi muito, 79 anos. A velhice apodera-se desse corpo e sei que minha hora está chegando. Mas mesmo assim, sinto que deixei de viver muita coisa. Lembranças retornam como flashes borrados e cada flash, mostra-me um tempo distante e tão familiar, mas que ainda sim, quero esquecer por sentir muita vergonha.
Nasci em 1946, em uma terra que ainda não era nossa, embora fosse o que tínhamos. Filho de japoneses duros, trabalhadores, silenciosos. Cresci entre irmãos, no meio de obrigações e silêncios. Acho que aprendi cedo que "sentir" era um luxo que a gente não podia ter.
Quando me mandaram para o Japão, fui sozinho. Não sei se fui escolhido ou descartado. Mas fui. Lá, entre uma língua que não dominava e uma cultura que só conhecia superficialmente, me tornei metade de tudo: meio brasileiro, meio japonês.
Voltei para o Brasil, querendo fazer o certo. Casei-me com uma moça japonesa através de um casamento arranjado pelas nossas famílias e tivemos uma filha juntos, mas a verdade é que eu estava dividido demais por dentro para ser inteiro com alguém. Eu trai minha esposa muitas vezes. Fui egoísta. Andava com a amante nos mesmos lugares onde estava minha família. Hoje vejo que era como se eu gritasse: "Olhem para mim! Eu existo! Eu também quero ser amado!". Mas tudo o que consegui esses anos todos foi afastar as pessoas a minha volta.
Pedi dinheiro e prometi devolver, mas não consegui. Fui inconsequente. Por nunca ter aprendido a cuidar de mim, não soube cuidar dos outros. Não me via com tamanha responsabilidade. O desespero era tamanho que tive que fugir das pessoas, do casamento. Dessa vez fui para um estado distante da minha terra natal e lá conheci sua mãe. Ela era jovem demais, bonita, cheia de vida. Eu, com meus 41 anos, cheio de medos escondidos não a tratei como merecia. Fui ciumento, controlador. Fiz ela largar seu emprego. Dizia que era amor, mas no fundo sentia medo. E nessa fase caótica, nasceu seu irmão e em 1991, você apareceu. Tão pequena, tão minúscula, inocente e frágil. Não aguentei e precisei fugir novamente.
Duas semanas após seu nascimento, covardemente embarquei para o Japão deixando sua mãe sozinha com duas crianças inocentes. Ironia cruel, não? Voltei para o mesmo lugar de onde me senti perdido da primeira vez. Não sei o que fui procurar lá: dinheiro, poder, mulheres, liberdade?
Passei anos vivendo como quem tenta esquecer o que viveu.
Hoje, aqui dentro, tem um amontado de rostos, lugares e silêncios que já nem sei ligar entre si.
Mas tem uma coisa que dói:
Eu não vi você crescer. Eu não vi seus passos, seus aniversários, seus silêncios também.
Não fui o pai que você precisava.
Talvez, no fundo, nunca fui inteiro para ninguém, porque nunca soube quem eu era.
Se eu pudesse voltar, não sei se teria forças para fazer tudo diferente.
Mas hoje, ao menos, posso reconhecer:
Eu perdi mais do que ganhei.
Fugi mais do que fiquei.
E a maior ausência foi minha.
Me perdoe, filha.
Por não ter estado presente.
Por ter deixado você com perguntas demais.
Por ter sido um homem sem respostas.
Com tudo que me resta,
- Seu pai.
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