O Inimigo [Conto]



A sala está escura. Há várias pessoas em minha volta. Elas recitam palavras semelhantes a uma prece, mas não consigo distinguir o que falam. Ouço o som dos batuques. Sei que tudo isso faz parte do ritual e que esta encenação é necessária para que meu corpo e minha mente adentre em um estado de transe. Apesar de sentir medo, estou decidida a estar cara a cara com meu pior inimigo. Quero saber quem é a pessoa que está sempre atrapalhando meus planos.

Alguém se aproxima de mim e me oferece algo para beber. Bebo, desconfiada, sentindo um gosto amargo em meus lábios. Uma voz feminina pede para que eu feche os olhos e assim obedeço. Em frações de segundos acordo em outro plano. Não ouço barulhos de tambores e o canto é extinto. 

Começo a andar por esse lugar escuro e aos poucos, conforme caminho, minhas vistas se acostumam com a escuridão e percebo que estou em um corredor. Caminho lentamente, pois o território é do inimigo e não posso subestimá-lo, afinal, ele aparenta conhecer bastante sobre mim. Esse corredor imenso, mal iluminado, me leva a uma porta. É provável que eu deva entrar lá. Em passos lentos, aproximo-me da porta. Minha respiração fica mais ofegante e uma pressão no peito começa a ficar forte. Abro a porta e dou de cara com alguém sentado de costas. Entro na sala. E a porta se fecha sozinha. 

A pessoa à minha frente começa a gargalhar e diz:

- Jamais achei que você viria aqui! E já que está aqui, que façamos um brinde!

A voz do meu inimigo me espanta. Eu já ouvi ela várias vezes. Com o corpo trêmulo, morrendo de medo, recorro a coragem antes que ela me falte.

- E-Eu... Eu não sei quem é você, mas você é alguém conhecido para mim. Sua voz, seu jeito. Mas isso não importa! Quero saber porque tenta atrapalhar meus planos!! Por que tenta a todo custo atrapalhar tudo aquilo que faço?! O que fiz para me odiar tanto assim?

- Ora, Ora. Você acha que a odeio, minha querida? Está enganada! 

Ao dizer isso. A pessoa se levanta da cadeira e esse movimento me assusta. Automaticamente fecho meus olhos. Estou com medo. E se eu me decepcionar quando eu ver que o meu pior inimigo é alguém que amo??? A pessoa se aproxima de mim e consigo sentir sua respiração. 

- Você fez o que fez para estar cara a cara comigo, por que o medo? Abra seus olhos e olhe-me por completo. 

O medo vai se tornando controlável. Abro lentamente os meus olhos e o que vejo me deixa atônita. Uma expressão de incredulidade estampa-se em meu rosto. Os lábios esboçam um maquiavélico sorriso. O meu pior inimigo era eu mesma.

- C-Como isso é possível? Não. Não é verdade. Isso é uma brincadeira! 

- Você não acredita que você mesma é seu pior inimigo porque sua mente está condicionada a acreditar que o mal sempre será algo externo de si.

Um monte imagens surge em minha mente. Imagens de cada momento do passado em que acreditei que estava sendo sabotada por alguém, quando na verdade, era eu mesmo que me sabotava...

- As pessoas adoram fazer isso. - continuou - gostam de atribuir culpas aos outros pelas coisas que deixaram de realizar. Um projeto mal sucedido. Um relacionamento que fracassou. Uma demissão não esperada. Elas vivem criticando os outros sem perceber a própria falha. Esperam que o mundo girem a redor delas, sem parar para analisar que o mundo gira no próprio eixo. Estão preocupadas demais com suas necessidades e se esquecem de ver que todos são necessitados.

- E-Então... Era você que estava presente quando não acreditei que seria capaz de superar um obstáculo? Todo esse tempo... Era você? Quer dizer... Era Eu dizendo a mim mesma que não seria capaz??? 

- Minha querida, você é muito lerda. Eu sou sua outra parte que existe para te desencorajar. Eu sou sua a outra parte que existe para te mostrar que tudo o que faz não vale absolutamente nada. Eu continuarei sendo sua outra parte que encherá sua cabeça com dúvidas! Eu sou sua a outra parte que fica completamente satisfeita em te ver fracassar.

Suas palavras me abalaram e comecei a chorar por todas as coisas que deram errado em minha vida, pois ela estava correta. Meu pior inimigo era eu mesma. Uma tristeza se apoderou de mim e senti que estava sendo derrotada por algo que sempre esteve comigo. Com a cabeça baixa, acolho minhas mãos e faço uma prece. O "Inimigo" começa a gargalhar e com palavras maldosas, diz:

- Pensei que você fosse mais forte. Me enganei. Até perdi a graça de brincar com você.   

Uma misteriosa força brota de meu ser, fazendo com que esta energia percorresse todo meu corpo. A tremedeira parou. O medo sumiu. A angústia cessou. Levanto-me e olho nos olhos do meu Inimigo, dizendo as seguintes palavras:

- Você nunca foi um inimigo para mim. Agora vejo, que você estava me ensinando a como vivenciar meus sonhos. Cada palavra sua de desalento, me fez buscar o alento na misericórdia divina. Se me deixei levar algum dia pela desesperança, redescobri que a esperança ressurge em novos sonhos e no desejo de uma nova vida. Você está me ensinando a trabalhar minha autoconfiança, pois quando há convicção naquilo que se acredita, o testemunho da fé vem através da obra. Agora. Eu assumo o controle de mim, vivendo cada acerto e aprendendo com cada erro, pois ambos são essenciais pro meu amadurecimento. Mas fique tranquila. Você continuará sendo parte de mim e juntas, seremos uma só. A Luz e a Escuridão. O Bem e o Mal. O Amor e o Ódio. A Paz  e a Revolta. O Silêncio e a Palavra. Somos uma só.


A outra parte desapareceu sorrindo. Acordei do transe um pouco confusa, mas com uma certeza inabalável que estava somente em minhas mãos fazer desta encarnação a melhor o possível.


E a sabedoria de Deus preencherá o mundo assim como a água preenche o oceano.


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