Conto: O Relógio

 Isso que vou relatar aconteceu há alguns dias atrás. 

        Era pleno domingo e lá estava eu a andar por uma praça qualquer, esperando espairecer de minha mente os problemas que me afligia naquele momento. Comprei um sorvete e sentei-me em um banco, melancólica com a passagem da estação, aflita com problemas que pareciam não ter solução. E infelizmente outono não me era uma estação agradável, sempre me trazia recordações penosas. Via ao meu redor poucas pessoas. Alguns casais de namorados que trocavam carícias esperando se aquecerem no calor da emoção. Senti-me estranha imediatamente. Bastava-me um telefonema e tudo poderia ter sido resolvido. Resolvido entre aspas. Não era o tipo que dava o braço a torcer, preferiria mil vezes esperar que ele viesse atrás de mim, pedindo desculpas como sempre foi por todas suas burradas cometidas. Errada? Eu? Jamais! 

Procurei me distrair de qualquer maneira. E que graça teria esta estação? Não é preto e nem branco, não faz frio e nem calor, é tudo cinza e o contraste horrendo que me incitava a solidão. Solidão que poderia ter sido terminada com um telefonema! 

       Entre conflituosos pensamentos surgiu uma figura misteriosa naquela praça. E nada era mais notável em pleno outono, em que as folhas volitavam sobre o céu e as árvores que ficariam secas nos próximos meses, o semblante daquele senhor que sentou em banco de uma praça com o olhar perdido no horizonte frio e cinzento. 

        Passou pela minha cabeça indagações de quem seria ele. De uma aparência um tanto quanto singular, parecia que tinha regressado a alguma vida passada inglesa minha. O Homem vestia-se semelhante aos nobres aristocratas do século 19, com direito a chapéu contido e sua bengala ao lado. Perdido e nos tempos errados? Loucura, e quem sou eu para falar sobre Loucura! Pobre senhor, que não viu a passagem do milênio e estamos a todo vapor no século 21! Tempos contemporâneos em que tecnologia surpreendia a todos a cada dia, fazendo as pessoas se aproximarem, mas se isolarem ao mesmo tempo. Complexo, não? Todavia, a figura variada não era vista todo dia. Seria um artista? Estaria gravando em algum lugar perto daqui? Pinta de galã não tem, mas confesso que era charmoso. Imagina aquele velho de 60 anos, que pareceu que viveu tudo na vida demonstrando sabedoria em seu olhar. Cabelos grisalhos, olhos azuis, vestindo igualzinho aos nobres ingleses do século anterior, parecendo que saiu da fotografia do meu bisavô. Charme que só esses velhos sabem transmitir. Não conseguia disfarçar que olhara para ele. Assustei-me quando ele percebeu minha indelicadeza. O sorvete derramou em minha roupa e o meu dia acabara de ficar insatisfatoriamente completo. 
      
      Ele aproximou-se de mim e ofereceu um lenço. Sorriu meigamente e finalizou dizendo que acidentes aconteciam. Recusei grosseiramente seu gesto de elegância e sai para ir ao banheiro da sorveteria. Expliquei o ocorrido para atendente e ela me mostrava onde ficava o lavatório. Por dentro estava morrendo de vergonha. Sai do ambiente procurando-o com olhar e o avistei sentado no banco da mesma forma que o vi pela primeira vez. Aproximei-me dele e sentei ao seu lado. Desculpei-me pelo gesto ingrato que dera minutos atrás e ele sorriu concordando com a cabeça como se entendesse. O Silêncio instalou-se ao nosso redor.

       Não via clima para puxar um assunto ou fazer um comentário fútil sobre as pessoas que estavam naquele local, sobre o outono que odiava ou sobre minha preocupações momentâneas.  Até que então, ele retirou um relógio antigo do bolso, abriu-o e ficou contemplando-o com um olhar vago e saudoso. Sentindo-me desconfortável pela minha curiosidade tomei coragem e perguntei:

- Está esperando alguém?

- Sim. – Disse sorridente – Estou esperando chegar a hora de minha partida!

 Suas palavras faziam total sentido. Estava óbvio que era estrangeiro e partiria do Brasil para encontrar alguém daqui algumas horas. Percebendo meu entusiasmo com sua resposta, logo respondeu:

 - Esqueça sua vaidade e orgulho. Ela não lhe fará bem. Você está esquecendo-se de olhar para seu o interior preocupando-se com o que é externo. Não ouçam os outros, ouça você e o que seu coração quer dizer.

       Era notória a minha falta de palavras e reação com o que me fora dito. Seria um vidente? Aqueles que enxergam as auras das pessoas? Ou pior, será que ele veio a mando do Outro? Jogar esses insights para me induzir a ligar para ELE? Fechei a cara na hora e percebendo meu emburramento continuou falando:

"Você tem um telefone, pode dar a qualquer momento uma ligação. E essa Ligação pode mudar seu futuro e dar novas chances de recomeço. Infelizmente, mesmo com todo esse aparato tecnológico que poderia ser utilizado para diminuir a saudade, ele está sendo usado para afastar as pessoas. Laços supérfluos são criados e logo são destruídos no primeiro vento que bate, ou na chegada do Outono onde as folhas caem. Você tem um celular, pode ligar a qualquer momento para qualquer pessoa. Mas o que lhe falta é sinceridade, além de coragem para dizer aqueles o quão importantes são na sua vida. Eu tenho um celular, posso também fazer uma chamada, mas quem eu quero não vai atender, pois a linha não é mais a mesma. Minha conexão com ela é outra, já que sua moradia não é desta dimensão.



         Fiquei em estado reflexivo depois da “bronca” que acabara de levar. Ele continuou do meu lado com o relógio aberto. Via os ponteiros passando. Olhei para o céu e permitira a mim, sair um pouco da casca que havia criado em minha volta. O Azul do infinito, as folhas que caiam, as pessoas que sorriam e os carros que passavam por ali ganharam um novo sentido. 


Contemplara aquela estação e entendera a razão de ela ser assim. Senti que algo havia brotado em meu ser, uma sensação diferente crescia e aquele senhor parecia sentir a mesma coisa. O outono apesar de sua textura cinza contrastava com o azulado do céu. Nas noites sombrias, a lua iluminava junto com as estrelas o caminho que formava a via láctea. E grandes são os mistérios que intitulam algo que chamamos de Vida.

Levantei do banco, abrindo os braços e fechando os olhos.  Senti uma forte energia envolver meu corpo, os barulhos dos carros ou o outono deixara de me incomodar e estava ali, de braços abertos e olhos fechados envolvida por uma energia misteriosa, mas extremamente positiva.

      Via-me em uma torre e percebi que aquela construção sólida era na verdade eu. Na verdade, todos nós construímos em volta de si, Torres que supostamente moldam a nossa personalidade exterior. E como toda torre, possuímos nossos sistemas de segurança e aviso. Mas, e quando essa torre é destruída não pelos homens, mas pelos raios dos Deuses? Talvez, eu deveria aprender que não preciso ser tão rígida comigo, não devo me prender em uma Torre, amarga, sem perceber a beleza de cada estação do ano.

     Lágrimas incontáveis forram derramadas e ao abrir os olhos, via as pessoas com um olhar curioso e de reprovação, mas no meu interior aprendi a não ligar tanto para elas e sim, a dar vazão ao que realmente estava sentindo naquele momento.
    
Voltei meu olhar para aquele Senhor e curiosamente ele não se encontrava mais lá, apenas deixara seu relógio de bolso no banco da praça. Peguei o relógio e o pressionei ante o peito e agradeci a Deus, caso Ele existisse, a oportunidade que fora me dada de recomeçar, como um novo SER.

Sai daquela praça feliz por ter tido um encontro tão emocionante com a Vida. Peguei meu telefone, que estava no silencioso e vi inúmeras chamadas não atendidas dele. Com um sorriso no rosto, apertei um botão e esperei que ele atendesse o telefone. Dois segundos fora o tempo que esperei, tamanha era a felicidade, acabei falando:

- Estou pronta para amar novamente!
FIM



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