Naquela noite eu tive um sonho estranho. Sonhei que você morria. Sonhei que eu observava você morrer e nada fazia para ajudá-lo. A sensação que tinha ao ver a cena era de alívio, não tristeza. Acordei espantada e em choque com meus próprios sentimentos. Estranhamente, na semana que tive este bizarro sonho foi na semana que você passou mal e eu tive que ficar um dia inteiro com você na UPA. E aquele dia foi um teste de paciência e de me fazer olhar mais uma vez para um tanto de sentimentos ruins que guardo com relação a você.
E aqui fica uma carta em aberto para ti, pois sei que você nunca a lerá, essas palavras nunca vão chegar até você e elas morrerão antes de alcançarem seu verdadeiro intento.
No fundo, eu nunca te perdoei por ter me deixado para trás. Eu não queria ter sido abandonada por você ainda recém nascida. Eu tinha tantas idealizações de querer ter crescido com um pai presente que isso continua sendo uma ferida aberta em mim. Cresci sem referências de como me posicionar no mundo, sem uma referência masculina forte, estável e presente para me mostrar como ser alguém decidida e segura dos meus passos. E todas as figuras masculinas que tentaram substituir seu espaço, não o fizeram tão bem assim, pois o seu espaço era insubstituível.
Eu precisava de você para crescer forte. Eu precisava de você para ser minha rocha nos momentos de instabilidade. Eu precisava de um pai e nunca tive de fato um. E isso é algo que dói em mim quando olho pra você, desfalecendo nessa cama, prostrado pelo envelhecimento de seu corpo; dói quando me pego pensando no tempo que perdemos e em toda distância que nos separou por ter sido um completo babaca individualista, por não ter pensado nem um pouquinho em sua família. Dói pai, tudo isso dói porque agora tenho que cuidar de você e isso se tornou um pesado fardo.
E antes que me falem que é obrigação de filhos cuidarem de seus pais idosos, deixa eu contextualizar a situação: meu pai me abandonou com apenas 2 semanas, foi para outro país, nunca cogitou levar a família com ele e tampouco procurou ser presente. Nunca "cuidou" de mim, nunca cuidou de ninguém da sua família. Viveu a vida de modo egoísta. Fui conhecê-lo com 27 anos doente, velho, desmemoriado. E são longos 6 anos cuidando dele... cuidando de alguém que não cuidou de mim..
Você tentou preencher sua falta com dinheiro e com aquilo que o dinheiro podia comprar, mas... olhando agora, o que o dinheiro comprou para você, para mim, para nossa família? O dinheiro não comprou afeto, não construiu relações. E todo poder que você almejava ter, com a definhação do seu corpo com o passar dos anos, esse poder não lhe serviu para ampará-lo em sua desgraça. E agora você está tendo que confrontar seu carma e tudo aquilo que rejeitou no passado e ainda que finja demência, sua consciência faz incessantes cobranças de como as coisas poderiam ter sido diferentes se você tivesse sido mais amoroso, mais atencioso; menos egoísta e mais família.
Eu sei que a Espiritualidade tem alguma lição para me ensinar com toda essa experiência, mas está difícil enxergar sentido... está difícil, mas eu vou aprender com esse desafio.
Mas acho que meu sonho foi meu inconsciente emergindo. Mostrando no fundo que guardo pensamentos sombrios, maléficos, não tão bons assim. Esse desejo é uma mistura de tudo: sentimentos de dor, de raiva, de nojo, de rejeição. Por um instante, desejei que tivesse chegado sua hora de partir, desejei de verdade me ver livre dessa obrigação, desse fardo.
Não está muito correto esse tipo de pensamento, eu sei... e tento direcionar esses pensamentos quando vejo que estão indo para um caminho que também pode me destruir mentalmente.
Naquele mesmo dia que o vi desfalecendo naquela cama, você olhou pra mim e eu olhei para você e quando eu falei que estaria com o senhor e que não era pra se preocupar, foi sincero também.