ATO DOIS: "A VISÃO"


Sou atormentado desde criança por pesadelos. Sim. Pesadelos assustadores que te fazem suar, chorar e acordar gritando. Ao longo da minha vida, tentei abafar meus medos e ocultar minhas angústias atrás de uma imagem de autossuficiência. Mas... mesmo vivendo aquilo que chamam de “vida adulta”, continuei atormentado por esta angústia que parecia não ter fim.

Todos os dias, quando levanto da cama, percebo que não há distinção entre a realidade e os meus pesadelos. Vivo como se estivesse preso neste maldito sonho do qual não consigo acordar. O mais estranho de tudo é não saber quando este pesadelo começou e trouxe consigo seu tormento a ponto de me levar a destruir tudo aquilo que eu conhecia. Simples decisões me direcionaram ao abismo do sofrimento. Simples decisões foram capazes de me levar a conhecer o fracasso, a dor e a solidão. Vi a dor se alimentar do meu sangue e ouvi o diabo rir das ruínas daquilo que chamava de “sonho”. Passei anos mergulhado na parte mais negativa de minha alma, sofrendo todos os dias por medos que vieram à superfície e que não consegui enfrenta-los. Sofri tanto que cheguei a um ponto que a dor letargiava lentamente cada sentido que possuía. Fui perdendo minha sensibilidade e todos os sentidos que davam significado a vida humana foram deixando de existir para mim.  

O primeiro a me abandonar foi o paladar. Passei alguns meses sem sentir o gosto dos alimentos. Não sabia mais como saborear uma comida. Era como se eu mastigasse plástico e engolisse pedras. O garfo parecia pesar uma tonelada e só de olhar para a comida no prato, sentia-me enjoado. Emagreci quinze quilos em menos de um ano! Eu sabia que precisava comer bem para ter energia. E assim, me forcei a continuar comendo mesmo não sentindo o sabor dos alimentos.

Mas hoje, no dia que decido morrer, sinto algo diferente. Ao almoçar com Cristina, senti pela primeira vez, após vários meses, o gosto de um bom vinho. Senti a maciez daquela carne e o seu sabor penetrar minhas papilas gustativas. Fazia tanto tempo que não comia algo saboroso! Meu paladar estaria voltando logo hoje? O lado bom é que eu morreria hoje, sabendo que valeu a pena gastar cada centavo nesse almoço.

- Paulo! Vem logo! – Exclamou Cristina, acenando para mim na frente de uma entrada que tinha naquela praça e dava à um bosque. 

- Calma, estou indo! – Respondo.

Porque mulheres estão sempre apressadas? 

Ando um pouco mais rápido para alcançá-la e me deparo com um caminho repleto de hortênsias. Não sabia que tinha um lugar assim naquela cidade. E eu achando que conhecia bem esta cidade por morar aqui desde que nasci. Observo Cristina olhar para as flores admirada. Também estou. Fazia anos que não reparava na natureza por estar preso a rotina de cidade grande. O dia-a-dia atribulado de um escritório me fez entrar no modo automático e esquecer que existia também um mundo mais natural e menos exigente.

Olhava para aquelas flores tão delicadas. A natureza não faz esforço para existir. Tanto esforço o homem faz para provar algo para si e para outros e por vezes, acaba fracassando e arranjando inúmeros inimigos. O homem vive em conflito; raramente consegue conviver bem com seus semelhantes. Mas as flores, as plantas e árvores simplesmente existem e se adaptam as condições do seu meio sem entrarem em conflitos entre si. Há espaço para que todas cresçam. Elas respeitam as diferenças. Elas não brigam por territórios ou para descobrirem quem é a melhor de todas. Elas coexistem de um modo harmonioso e pleno; estando sempre a oferecer para nós, humanos, os frutos do seu crescimento. 

Me pergunto, às vezes, se o raciocínio designado aos humanos é mesmo sinônimo de superioridade em quesitos de evolução? Talvez, não. Sinto que a segregação dos seres humanos nasce através da linguagem, pois a partir do momento que damos nome a algo, estamos limitando o que podemos conhecer sobre ele.

- No que você está pensando? 

Estava tão absorto em pensamentos que não vi Cristina se aproximar de mim. 

- Estou reparando na beleza destas flores. Nunca parei para observá-las. 

Cristina dá um leve sorriso e me olha de modo provocador, mas ingênuo. Entretanto, meus pensamentos voam longe ao fitar aquela paisagem florida e nem observo que a mulher do meu lado estava prestes a desabafar seus problemas. 

- Há tanta beleza para ser contemplada! - afirmou Cristina. 

Balancei a cabeça positivamente sem revelar o que realmente pensava. Não queria demonstrar que tínhamos a mesma ideia em mente: se matar. 

- Tenho refletido naquilo que lhe contei mais cedo. - continuou.

Será que ela desistiu de cometer suicídio? Ainda bem. Cristina é uma boa pessoa. 

- O que está lhe fazendo mudar de ideia? - perguntei. 

- Se eu te disser que o nosso encontro me permitiu enxergar a vida por outro ângulo, o que diria? - indagou-me.

- Que isso é algo bom. 

- Eu não sei explicar o que aconteceu. Estava tão decidida a horas atrás que esse seria o melhor caminho para solucionar todos os meus problemas, mas agora consigo ver que não é. 

- Você pode me falar mais a respeito disso? - pergunto curioso.

- Todos os dias, quando acabava de acordar, sabia que teria que ver meus pesadelos e conviver com eles. Era como se fosse um martírio. Carreguei uma cruz pesada por tantos anos, condenada pelo pecado de não me perdoar. 

Senti naquelas palavras de Cristina uma angústia profunda. Não era apenas os relacionamentos superficiais que atormentavam. Havia uma ferida mais encravada em sua alma e sentia que nos próximos minutos ela revelaria os tormentos que vivenciara. 

- Ele era tão pequeno, Paulo. Tão inocente. Tão..! - suas palavras foram interrompidas por uma súbita vontade de chorar, mas ela segura e respira profundamente. 

- Cristina, não se sinta pressionada, por favor. 

- Eu tive um filho e o perdi em um acidente. Bastou um segundo que desviei minha atenção, um segundo e Carlos correu para pegar a bola e não viu o carro se aproximando em alta velocidade. Foi horrível ver seu pequeno corpo ser arremessado a metros de distância. Ver aquela criança tão cheia de energia, inerte em uma poça de sangue. 

Desta vez ela não contém o choro e as lágrimas rolam por sua face avermelhada. 

- Cris... - me aproximo dela e a abraço.

Eu sabia que o meu abraço não poderia trazer seu filho de volta. Eu sabia que aquele abraço não poderia reconstruir seu coração que estava em pedaços. Eu sabia de tudo isso e mesmo assim a abracei. 

- Eu me senti tão sozinha estes anos todos, Paulo. Eu fiquei presa no tempo e nunca consegui me perdoar por não ter sido capaz de impedir essa tragédia. E se eu não tivesse desviado minha atenção? E se eu não tivesse levado ele no parque naquele dia? E se...!

Continuei abraçando ela. 
Toda aquela dor, por um instante, era a minha dor também. 

- Cris, você não pode se prender as conjecturas do "E se...". Tudo aconteceu como tinha que acontecer. Não temos o poder de atuar sobre os fatos passados. Temos apenas que aceitá-los como são. 

- Dói ouvir isso, mas é a verdade. Agora eu vejo que é a verdade. Esses anos todos me condenei no remorso que deveria ter feito algo. Entrei em quarto escuro, acreditando que jamais sairia dele. Hoje, uma janela foi aberta e ao me aproximar dela, consigo ver um campo florido. 

Ao vê que Cristina recuperava aos poucos sua sobriedade, solto-a mesmo não querendo. Afinal, esperei tantos anos para abraçá-la. Ela pega um lenço em sua bolsa e limpa as lágrimas de sua face. Acompanho seus gestos e no final, ela me dá aquele sorriso devastador. Meu coração sobressalta e começo a sentir pequenas pontadas. Por que agora? Por que no último dia que decido morrer, descubro que além da escuridão existe luz? Por que estou sofrendo como se fosse o último mártir da terra? O que está impedindo a minha visão de enxergar outras alternativas? Talvez, o cansaço. Cansei de viver uma vida que não quero. Cansei de encontrar justificativas para meus atos. Cansei de ter que dar satisfações para todos à minha volta. Cansei das cobranças alheias que são feitas com juros e correções. Cansei de conviver com os seres humanos e sua hipocrisia. Cansei.

As pessoas normalmente diriam: "você está equivocado", "você tem que pensar de modo positivo". Isso. Basta um pensamento positivo e tudo muda ao seu redor. O mundo pode está vivenciando um caos e basta um pensamento positivo para que todos fiquem felizes. Que isso. Não pode ser sarcástico, não? Modo positivo de ver a vida enquanto ignoro a dor e o sofrimento que há a minha volta? Pensar positivamente não muda a realidade de nada. A própria vida existe sob destroços e por vezes, é destruída pelas opressões do dia-a-dia.

Estou cansado de ver a vida desta forma.

- Obrigada, Paulo, por estar aqui. - diz Cristina ao se aproximar de mim.

- Não precisa agradecer. - respondo.

- Não, você não entendeu. Obrigada por ESTAR AQUI. Por não ter corrido para as colinas enquanto desabafava minhas dores. Você me acolheu de uma forma que nunca aconteceu antes. Você me abraçou e neste abraço, senti que minhas feridas, minhas dores, minha angústia, também recebiam colo e alento. Você é incrível. - disse ela com um sorriso no rosto.

Meu coração dispara e começo a suar frio.  Cris se aproxima a distância de um palmo e olha em meus olhos. Vejo sua força. Vejo também sua desistência em se matar. Vejo o desejo que tenho por ela assim como vejo seu desejo por mim. Seus olhos esverdeados tem um brilho diferente. Eu me enxergo dentro deles e sei que ela se enxerga em meus olhos.

- Eu enxergo você, Cris.

- Eu também sou capaz de vê-lo, Paulo.

Continua...

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